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11/02/2021 às 19h13min - Atualizada em 11/02/2021 às 19h13min

Esgotamento mental contínuo pode levar ao transtorno de estresse pós-traumático

De acordo com especialistas, não é preciso viver diretamente um fato gerador de trauma para que o distúrbio seja desencadeado

O Tempo
Ao viver uma experiência saborosa ou catártica, algo simples como se deliciar com uma paisagem bucólica ou extraordinário como o nascimento de um filho, é comum o desejo de congelar aqueles instantes, como se fosse possível voltar a acessar aquelas sensações em outros momentos. Não por acaso, muitas dessas memórias costumam ser registradas em fotos e vídeos, como que na tentativa de eternizá-las. Por outro lado, há lembranças, associadas a grande carga de sofrimento, que desejamos simplesmente apagar, mas que, ironicamente, nos revisitam sem pedir licença. Uma condição que, quando ocorre de forma persistente, caracteriza o Transtorno do Estresse Pós-Traumático (TEPT), um distúrbio de ansiedade que provoca sinais e sintomas físicos, psíquicos e emocionais que perturbam uma vítima ou uma testemunha de atos violentos ou de situações traumáticas que, em geral, representaram ameaça à sua vida ou à vida de pessoas queridas.

“É como se aquele evento nunca chegasse ao fim, porque o cérebro continua a processá-lo. Só que, mais do que lembranças, o indivíduo continua convivendo com as emoções desencadeadas por aquela situação e, por isso, passa a lidar com descargas de ansiedade, como se a vida estivesse em perigo”, explica o médico psiquiatra Rodrigo de Almeida Ferreira, complementando que os pacientes costumam ficar reativos ou mais distantes, evitando contato com pessoas ou lugares que, de alguma maneira, remetam ao episódio traumático. O problema tem repercussão sobrea memória e sobre o interesse em se engajar em atividades e pode levar até a uma desconexão com a realidade.

O terapeuta cognitivo-comportamental reconhece que, quanto maior o trauma, maior a chance de as pessoas expostas desenvolverem o transtorno, mas adverte que não é necessário viver um fato específico para o desenvolvimento do distúrbio. A avaliação está em consonância com o que defende Marcelo Feijó de Mello, professor livre-docente adjunto do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e professor pleno da Faculdade de Medicina do Hospital Israelita Albert Einstein.

Participando de um debate transmitido ao vivo pelo canal Covid Psiq – hospedado no YouTube e que promove debates sobre os desdobramentos psíquicos ocasionados pela pandemia do novo coronavírus –, Mello ponderou que o TEPT pode estar relacionado ao esgotamento mental diário e lembrou que a atual emergência sanitária afetou rotinas, ampliando o estresse sobretudo para profissionais que estão na linha de frente de enfrentamento da doença.

De fato, um estudo divulgado em agosto do ano passado apontou que 28% dos 402 pacientes do hospital San Raffaele, em Milão, na Itália, que foram monitorados após contraírem a Covid-19, desenvolveram sintomas de estresse pós-traumático. O índice está alinhado ao que indicaram pesquisas anteriores, que sugerem que 30% dos pacientes internados por doenças graves durante surtos infecciosos no passado desenvolveram o distúrbio.

E, embora a maioria dos estudos foque apenas os pacientes que contraíram doenças virais, Ferreira lembra que, em um contexto de calamidade pública, todos estão suscetíveis a desenvolver o TEPT. “Na verdade, quanto mais próximo do evento, maior o risco. Mas isso não significa dizer que só as pessoas que estavam presentes estão expostas. Mesmo não vivenciando diretamente o fato, quando a gente é confrontado continuamente com uma situação traumática, como o que está acontecendo em Manaus (AM), isso traz um impacto sobre todos”, comenta, fazendo menção à crise do sistema de saúde no Amazonas e em Roraima, quando a falta de cilindros de oxigênio levou pacientes da Covid-19 e de outras enfermidades a óbito, causando grande comoção no Brasil e no mundo.

Crianças são mais vulneráveis

O psiquiatra Rodrigo de Almeida Ferreira acrescenta que crianças, pessoas com comorbidades psiquiátricas ou que têm mais dificuldade em lidar com o estresse, sendo mais propensas a usar álcool e drogas, são mais vulneráveis ao TEPT.

Estudos sobre os impactos psicológicos decorrentes do rompimento da barragem de rejeitos de Fundão, da Vale, em 5 de novembro de 2015, no subdistrito de Bento Rodrigues, a 35 km de Mariana, evidenciam a tendência ao adoecimento de crianças e adolescentes que convivem com tragédias. Em 2017, a médica psiquiatra Maila de Castro, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais, participou de uma pesquisa que analisou a saúde mental de famílias afetadas pelo acontecimento. Além de serem identificados outros distúrbios psiquiátricos, como depressão e transtorno de ansiedade, 12% dos entrevistados foram diagnosticados com TEPT. Já entre as pessoas com menos de 18 anos, o índice escalou para 82,9%.

“As crianças têm algo particular: estão com o cérebro em desenvolvimento, por isso têm chance maior de carregar o impacto relacionado a um evento por mais tempo”, pontua Ferreira, informando que elas vão manifestar o distúrbio por meio de sintomas de comportamento, que devem ser observados pelos adultos. “Essa criança tende a evitar lugares ou lembranças associadas ao evento traumático, a ficar mais retraída, deixando de se mostrar engajada em atividades que antes lhe davam prazer, além de ter perturbações de sono e de fome”, detalha.

Tentativa de ‘apagar memórias ruins’ contribui para o desenvolvimento do TEPT 

Quando, no parágrafo que abre esta reportagem, falamos no desejo de apagar memórias associadas a episódios que causaram sofrimento, descrevemos um desejo comum, mas que também contribui para o desenvolvimento do transtorno de estresse pós-traumático, além de ser um sintoma do problema. Tanto que “o foco principal do tratamento é que o cérebro termine de processar o evento que desencadeou o distúrbio”, reforça Rodrigo de Almeida Ferreira.

“Em certo ponto, experienciar por completo as emoções envolvidas no evento é importante para que o cérebro não retorne com aqueles fatos na forma de lembranças e sensações físicas. O ideal, portanto, é que o indivíduo reinterprete aquele acontecimento, transformando-o em algo que expande a sua compreensão”, diz, citando os movimentos de atingidos por barragens como um exemplo de como a dor pode se transformada em propósito, que vai comunicar um senso de reparação para as pessoas envolvidas.

O psiquiatra alerta que um comportamento “higienista emocional”, em que se tenta barrar sentimentos entendidos como negativos, é prejudicial, pois a expressão natural do sofrimento permite uma resolução de conflitos. Portanto, “é preciso ter muito cuidado para não ceder à tentação natural de querer anestesiar essas sensações, tomando sedativos sem orientação médica”, avalia.

Rituais são importantes para elaboração da dor

“Não cumprir os ritos funerários é intensificar terrivelmente o que de traumático a morte já produz para os que permaneceram vivos”, cravou o psicanalista Sérgio de Castro. Na conversa, ele refletia sobre como medidas sanitárias para o enfrentamento da pandemia da Covid-19 comprometeram os ritos fúnebres. Uma situação também enfrentada por pessoas que não puderam sepultar seus mortos em episódios como o rompimento da barragem de rejeitos da Vale em Brumadinho, no dia 25 de janeiro de 2019. Dois anos depois do acontecimento, os corpos de 11 vítimas ainda não foram encontrados e, portanto, seus familiares não puderam velá-los.

Castro lembra que esses rituais de despedida são tão fundamentais para a espécie humana que um dos critérios para se definir se alguma espécie remota de ancestral pode ser considerada humana é a investigação se eles faziam o sepultamento de seus mortos. “Todas as culturas humanas, portanto, inclusive a de muitos de nossos ancestrais neolíticos, praticavam ritos fúnebres. Distintos, cada um à sua maneira, mas de forma verdadeiramente universal”, afirma o psicanalista.

Na mesma linha, Rodrigo de Almeida Ferreira acredita que a suspensão dessa etapa tende a agravar a dor e pode ser um fator que amplia o risco de desenvolvimento do TEPT. “Sem nos conectar com outras pessoas que estão vivendo aquele momento e sem ressignificar e honrar a memória da pessoa que nos despedimos, ficamos mais vulneráveis”, reconhece.

Saúde mental de profissionais na linha de frente desperta preocupação

Em socorro aos profissionais que estão na linha de frente das ações de enfrentamento à pandemia da Covid-19, uma rede solidária de psicólogos habilitados à terapia EMDR (Dessensibilização e reprocessamento por meio dos movimentos oculares, em tradução do inglês) montou, no ano passado, uma linha de atendimento remoto dedicada a esse grupo de pessoas.

À época, Sueli de Azevedo Menezes Cardoso Costa, segunda secretária da Associação Brasileira de EMDR, explicou que a modalidade é reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e é usada para o tratamento de veteranos de guerra que desenvolvem quadros de TEPT. A prática permite, com o movimento orientado dos olhos, “dessensibilizar lembranças que provocam grande mobilização emocional”. 

“Quando sonhamos realizamos movimentos oculares, o que permite um reprocessamento daquelas informações, daquelas vivências. O que fazemos na terapia EMDR é algo semelhante”, detalhou, situando que a abordagem, que é dividida em oito fases, também é usada para quadros de ansiedade, por exemplo.

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